Papo de Varzea

Lendas da Várzea: No meio de tiroteio na várzea, acabei nocauteado por um retrovisor

UOL Esporte

Imagine a cena: você é garoto, está no alambrado, assistindo a um jogo de várzea e, de repente, começa um tiroteio. O que você faz? O jornalista Marcelo S. Costa conta o que aconteceu em um campo da Zona Sul da cidade…

No meio de tiroteio na várzea, acabei nocauteado por um retrovisor

Essa aconteceu há muitos anos. Acho que foi em 1993, mais ou menos. Na região da Pedreira sempre existiram muitos times de várzea. Dragões, Falcão Dourado, Pioneer, Santa Amélia, ABC, Só o Pó, Represa, Unidos da Doze, Jd. Rubilene, Favela, Malhadão, Cordeiros, Pingaiada e por aí vai – sem falar nos que estão extintos, como o Xavantes, o Faísca, o Caxingui, o Itatinga, o Estrela do Santa Terezinha e o Ajax/Pq Dorotéia….

Desde que me conheço por gente acompanho a várzea. Era rotina no domingão ir para a beira do terrão ver amigos e parentes jogando futebol. O campo do Parque Dorotéia, que hoje virou CDC, foi feito em cima de uma antiga represa que aterraram. Era ali que os maiores craques e os melhores times desfilavam seu futebol. Até joguei quando era molequinho, mas gostava mesmo era de assistir. Ver o bicho pegando. O cheiro de erva impregnava o ar.

Os bebuns faziam todos gargalharem com suas atrapalhadas. A malandragem apresentava as suas gírias. A molecada soltava pipa e jogava bolinha de gude. Tinha o Pelézão. Ele gostava de tomar umas biritas e era torcedor fanático dos Dragões. De vez em quando, ajudava como massagista (entenda: era o carregador da bolsa mágica, com éter, gelol e água milagrosa). São personagens comuns. Qualquer outra quebrada tem. Como diz a música dos Racionais MC´s: ''periferia é periferia em qualquer lugar''. A várzea é assim também.

Já vi muita coisa acontecer. Graças a Deus, nunca vi morte. Mas ela, às vezes, passava perto por lá. Já vi juiz apitar armado. Quem conheceu os finados Bananinha e Valfredo deve se lembrar… Já vi também o próprio Bananinha jogando pelo Falcão Dourado driblar o time adversário inteiro e parar em cima da linha do gol, sentar em cima da bola e rolar pra rede. Disseram que foi gol de bunda.

Um dia presenciei o time visitante (se bem me lembro, era o Santos de Eldorado) sair correndo de campo quando os revólveres foram apontados pra eles. As chuteiras de cravo escorregavam numa rua, que ficava em uma subida e tinha asfalto recente. Os jogadores pareciam iniciantes em pista de gelo.

Nessa época, os caminhões de caçamba passavam na rua buzinando, cheios de torcedores e jogadores cantando, gritando e xingando. Parece que foi ontem. Os troféus de lata pareciam de ouro, tamanha a devoção com que os ganhadores os erguiam.

Batucada, rojões e tiros… Sim! Ouvi e presenciei tiroteios e brigas feias. Uma vez, era final de torneio no campão, entre Faísca, do Jardim Santa Lúcia, e Dragões, do Parque Dorotéia. De repente, uma briga em campo acabou generalizada, com torcedores entrando na batalha. O campo tinha uma valeta em volta, com esgoto. Era a água da represa, que escapava e borbulhava por ali. Alguns caíram dentro dessa valeta. Outros valentões puxaram as armas, de ambos os lados. Tiros para o alto e correria total.

Nesse dia, eu e mais dois amigos, o Guina (in memorian) e o Bad, nos escondemos atrás de uma caminhoneteF-1000. De repente, os tiros começaram a ficar mais próximos e uma galera vinha correndo em nossa direção. Fui levantar, mas estava debaixo do retrovisor. Bati em cheio a cabeça. Gritei e abaixei de novo, de tanta dor. Disse pros meus amigos: “Me acertou , me acertou!”

Eles já estavam longe, mas olharam com os olhos esbugalhados e voltaram correndo. Me levantaram e fizeram a pergunta: onde acertaram? “Na minha cabeça!” Eram dois moleques no meio de um tireteio. O amigo falou que tinha sido atingido. O que eles pensaram? “Ferrou! Tiro na cabeça, tá morto…” E foram logo procurando sangue. Quando viram o galo na testa, não entenderam nada. Será que a cabeça dele é de ferro? Eu falei: “Não é isso, poxa! Acertei a cabeça no espelho do caminhão”. Eles olharam um para o outro, pra minha cabeça. Acabamos todos caindo na risada.

Depois disso, às vezes o Guina, para me zoar, contava a versão dele do tiro que eu não levei. Os amigos se rachavam de tanto rir quando ele falava que eu caí no chão estrebuchando e gritando ''me acertaram''. Claro que a versão dele tinha mais charme. Eu ria junto, nem ligava…

Essa é só uma das várias histórias que vivi na várzea. Hoje sou formado em jornalismo e caminho pelos campos varzeanos cobrindo o futebol amador. Tudo por amor. O terrão está, aos poucos, acabando. Mas mesmo com a grama sintética assumindo seu lugar, ainda tem gente mostrando lampejos de criatividade,  improvisação e emoção. É o velho espírito do futebol de várzea que não morre. Novos tempos, novos modos e novos desafios.

Essa é a história de Marcelo S. Costa, jornalista, que aparece nos  campos de várzea em todos os fins de semanas. As fotos são de seu arquivo pessoal e mostram o campo do Parque Dorotéia antes da reforma (e depois).

Gostou? Quer contar uma história do futebol de várzea? Mande um e-mail para o Papo de Várzea: papodevarzea@gmail.com