Papo de Varzea

Na várzea, mulheres fazem sucesso e ignoram cantadas: “Peço número da camisa, dão telefone”

UOL Esporte

Mesária, técnica, cartola. Pense em uma atividade relacionada ao futebol de várzea e, certamente, vai encontrar uma mulher exercendo a função. Em um ambiente masculino por excelência, a mulherada está conquistando seu espaço, ignorando cantadas e brincadeiras.

O Papo de Várzea conheceu algumas dessas pioneiras e ouviu histórias de vida inspiradoras, como a das mulheres do Botafogo do Jaçanã e da vice-presidente do Santos do Jardim das Oliveiras, Isabel Varotto. E engraçadas, como a da mesária Dayane Tavares e da técnica Bruna Moreno.

“Passam o telefone no lugar do número da camisa”

Para começar, a história de Dayane. Formada no curso da Associação de Árbitros da Grande São Paulo, ela trabalha como mesária há anos. Começou quase por acaso. “Eu sempre gostei de futebol, mas jamais imaginei que um dia trabalharia com isso. Eu e o William tínhamos começado a namorar há pouco tempo quando fomos a um jogo dele, que é árbitro. O mesário faltou e ele me pediu para fazer a mesa, já que não tinha mais ninguém disponível. Fiquei insegura, mas deu tudo certo. Não parei mais”, lembra.

A decisão de seguir no futebol deixou os dois ainda mais próximos, graças ao calendário puxado que árbitros do futebol amador levam. Eles trabalham de domingo a domingo, comandando cinco, seis jogos por dia. “Eu brinco que árbitro não tem vida social. É só jogo, jogo, jogo… Como, no início do namoro, trabalhávamos em lugares diferentes, não dava tempo de ficar junto. Foi quando percebi que o jeito era ir para o campo, mesmo. Uni o útil ao agradável”.

O que não deve ser muito agradável são as cantadas que, inevitavelmente, aparecem quando uma mulher entra em um mundo masculino. Dayane, porém, tira de letra. “Tem isso em qualquer lugar, inclusive no campo. Afinal, só tem homem. Mas não falta respeito. O número de mulheres está crescendo, mas ainda são poucas na várzea. Então, quando o jogador me vê, faz brincadeira. É normal, por exemplo, passar o número do telefone no lugar do número da camisa. Mas é fácil lidar com essa situação. Eu sou muito séria e eles percebem logo”, conta.

Artilheiro coloca irmã no banco para poder jogar

Outra história inusitada é de Bruna Luise Moreno. Varzeana por influência familiar, ela é uma frequentadora assídua das partidas do time do seu irmão, o atacante Tom. Em um domingo, ela foi praticamente obrigada pelo irmão a entrar em campo. Ou melhor: a ficar no banco de reservas.

Em um jogo pela Copa Kaiser, o técnico do Inter Biricutico, do Jardim São Luiz, avisou que iria faltar. Seu substituto natural seria Tom, atacante e artilheiro do time. E irmão de Bruna. O jogo, porém, era importante demais para o goleador ficasse no banco. Foi aí que alguém deu a ideia: “Porque não colocar a Bruna como técnica?”

Parecia uma maluquice, mas era só pensar no assunto para encontrar motivos para fazer a aposta. Ela conhecia o time, gostava de futebol e, imprescindível, estaria em campo no dia do jogo. Estava decidido. Bruna aceitou virar técnica por um jogo e não fez feio. O Inter venceu a Mocidade Cabuçu, do Jardim Maria Estela, por 1 a 0. E quem marcou o gol da vitória? Tom.

“Os jogadores são amigos e eu não tive problemas. É claro que o Tom estava sempre de olho, antes do jogo a gente discutiu o que poderia acontecer e o que eu deveria fazer, mas as decisões foram minhas. Todos respeitaram e atenderam os pedidos que fiz em campo. Foi uma pena ter chovido. Mas quem foi ao Magnólia (local do duelo) viu um bom jogo”, comemora.

Futebol é coisa de família no Botafogo e no Santos

As outras duas histórias envolvem famílias que estão no mundo do futebol há muito tempo. No Botafogo do Jaçanã, o patriarca, Miltinho, fundou o time. Quando ele morreu, sua mulher, dona Fátima, assumiu a presidência e a filha do casal, Eloá, virou técnica.

''Todos na várzea sabem que, no Botafogo do Jaçanã, quem manda são as mulheres. E somos respeitadas por isso. Nós temos orgulho e trabalhamos para que nada falte aos nossos jogadores. Fazemos de tudo para honrar essa camisa que amamos'', afirma Dona Fátima.

A presidenta (como ela gosta de falar do cargo, imitando Dilma Rousseff), apesar de cuidar muito bem dos jogadores, não assiste aos jogos. Para não ficar exaltada, vai ao campo, mas dá um jeito de se distrair e não prestar atenção no que ocorre dentro das quatros linhas. Fica andando por perto. Em um jogo no Flamengo, da Vila Maria, chegou a caminhar na calçada de uma pista lateral da Marginal Tietê.

''Eu fico muito nervosa e não consigo ver o jogo. Fico andando de um lado para o outro e fico muito cansada. Acaba o jogo e estou acabada'', relata. ''É o jeito dela. Minha mãe fica muito tensa e acha melhor assim. Mas, depois do jogo, ela quer saber exatamente o que aconteceu, quem jogou bem, quem foi mal e se o juiz apitou direito'', fala a Eloá.

A treinadora, aliás, é um capítulo à parte. O pai era foi um craque nos tempos de jogador e era lembrado como um bom técnico. E passou o talento para a filha. ''Depois que meu pai morreu, muita gente dizia que a mulherada não ia conseguir tocar o Botafogo. Estavam errados, porque estamos aqui, firmes e fortes. Eu aprendi tudo de futebol com o meu pai. Cresci do lado dele, acompanhando os jogos nos campos de várzea'', conta. A estratégia é usar a linha-dura: ''Jogador que não respeita o comando, é mandado embora. Eles são acostumados porque meu pai era linha-dura. É melhor dispensar do que ter gente insatisfeita que não vai lutar pela sua camisa''.

O comportamento rende elogios: ''Ela entende bastante de futebol e todos a respeitam por isso. Ela sabe mostrar quem manda'', admite Vitor, zagueiro e capitão do time do Jaçanã. ''Ter mulheres no comando é normal para a gente. Só sentimos diferença mesmo no vestiário. E quando ficamos bravos. Por educação, às vezes temos que maneirar nos palavrões e na agressividade ao reclamar''.

A última história é de Isabel Varotto. Ela é vice-presidente do Santos, do Jardim das Oliveiras, e mulher do presidente e técnico, Nilson Barroso. E o amor dos nasceu na beira do campo. “Nos conhecemos no futebol. Ele sempre jogou pelo time e eu acompanhava os jogos. Começamos a namorar, nos casamos e as coisas não mudaram. Continuamos todo fim de semana nos campos de terra”, diverte-se Isabel.

O trabalho dos dois pelos Santos é grande. O time é uma das entidades que toma conta do campo de futebol do CDC do Jardim das Oliveiras. O local conta com uma escolinha de futebol para garotos da região – inclusive familiares da equipe principal, que acabou eliminada na terceira etapa da Copa Kaiser, superando o desempenho do ano anterior.

“O time principal, que jogou a Kaiser, é todo de amigos, de pessoas do bairro. A escolinha é recente, então nenhum deles passou por lá, mas muitos deles colocaram os filhos para jogar lá. Inclusive, o sobrinho de um dos jogadores está fazendo testes no Santos, levado pela escolinha”, conta Nílson.