Papo de Varzea

Em Heliópolis, 190 mil pessoas e mais de 40 times dividem um só campo de futebol

UOL Esporte

Na semana passada, recebi uma ligação que me deixou muito contente. O Fábio José da Silva, líder comunitário de Heliópolis, estava comemorando uma conquista grande do esporte naquela que já foi a maior favela da América Latina. Em dois meses, a escolinha de futebol que criou já está atendendo quase 200 crianças na quadra da Unas.

Lembrei, então, de uma das reportagens que o UOL Esporte fez no ano passado, em Heliópolis. Em uma tarde, vivemos um pouco a realidade de Heliópolis para constatar a importância do futebol na vida de quem vive por lá. Leia. Vale a pena:

Em Heliópolis, 190 mil pessoas e mais de 40 times dividem um só campo

Quem nunca andou pelas ruas da comunidade de Heliópolis se surpreende com a importância que o futebol exerce na comunidade. As ruas estreitas abrigam, a cada esquina, um time de futebol diferente. Os nomes vão desde homenagens a novelas, como o Cantareira, até a turma de amigos que se reuniam para tomar umas e outras, como o Bafômetro.

São mais de 40 equipes estruturadas dentro da comunidade, com sede própria e estatuto. Mas, apesar do tamanho de Heliópolis, na área da maior favela de São Paulo só existe um campo de futebol para atender às necessidades esportivas de mais de 190 mil moradores.

“Campo mesmo, só temos um. Temos algumas quadras, mas todas pequenas. O campo original era na área onde hoje ergueram o hospital. Fizemos um acordo para construir no terreno, mas até agora não temos oficializado que esse local é da comunidade. Por isso, consideramos o campo como área invadida”, explica Edson Arthur da Silva, diretor do Cantareira.

O terreno fica ao lado do Complexo Hospitalar de Heliópolis. É administrado pela Associação Heliópolis Social e Lazer, entidade que une alguns dos principais times da comunidade. A infraestrutura é doada pelo hospital: uma torneira para os atletas e ligações de eletricidade improvisadas nas salas de administração e zeladoria.

“O problema do campo é só um reflexo dos problemas gerais de Heliópolis. Hoje, nossa principal reivindicação é justamente a regularização fundiária. Você pode ter uma casa, mas não tem os papéis. Então, oficialmente, é uma invasão. Hoje, temos agências dos Correios, bancos, consórcios. Mas os terrenos e as casas ainda precisam de regulamentação”, fala Fabio José da Silva, líder comunitário e parte da diretoria do Festpan, um dos times da comunidade.

Apesar da estrutura precária, o campo de futebol invadido exerce duas funções primordiais: o lazer para as crianças e a união entre rivais históricos (e, consequentemente, dos moradores). “As crianças da comunidade não tem muitas opções de lazer. Hoje, temos um trabalho que atinge quase 1000 garotos. Eles estão aprendendo futebol em um momento em que poderiam estar na rua. Estão livres de influências que poderiam ser negativas. Além disso, o futebol é um espaço de união. Esse campo tem dois anos e ajudou muito a unir as pessoas. Antes, a rivalidade era enorme. Hoje, estamos juntos na administração desse espaço. É a prova de que dentro de campo, você luta pela vitória. Mas fora, pode estar junto com seu adversário, se divertindo e tomando uma cerveja como amigo”, explica Luciano Cirino, o Léo, da equipe do Bafômetro.

A rivalidade a que Léo se refere teve um episódio marcante há cerca de dois anos. Cantareira e Bafômetro são os dois times de maior sucesso na Copa Kaiser, o principal torneio do futebol amador de São Paulo – em 2012, o Cantareira ficou entre os dez melhores do torneio e, em 2013, o Bafômetro tem chance de igualar o feito. Atualmente, nove times de Heliópolis disputam o campeonato. A dupla teve a companhia, neste ano, de Festpan e Ressaca na Série A e de Metalúrgico, São Francisco, Galo de Ouro, Garotos da União e Paraíba na Série B. O Ratatá, uma das equipes mais conhecida da região, disputava o torneio, mas está suspenso por motivos disciplinares.

Nesse cenário, no programa “A Liga”, da Bandeirantes, ainda em 2011, Edson chamou o Bafômetro de “inimigos”. “Foi uma das maiores besteiras que fiz. Chamei os caras de inimigos e depois tive que consertar. No fim das contas, acabou sendo bom. Foi a oportunidade de sentar, aparar as arestas e garantir que a rivalidade ficasse só no campo. O futebol é um caminho muito bom para agregar as pessoas, para atrair incentivos para ajudar a comunidade. Hoje, o futebol de Heliópolis está fazendo isso”, fala Edson.

E o campo é uma das maiores provas de como o futebol está trabalhando ao lado das lideranças comunitárias para trazer benfeitorias para Heliópolis. Em 2012, aos fins de semana, foi realizada a Copa Heliópolis, com os 12 principais times da favela. E, graças à união entre as equipes, uma empresa de telefonia patrocinou o campeonato.

Os times, porém, não usam o terrão só para seus jogos. O Social, por exemplo, tinha, em 2012, um projeto para as crianças (parecido com aquele de Fábio, mas no lugar da quadra da Unas, o campo da comunidade). “Temos cerca de 50 alunos na nossa escolinha, com crianças de 7 a 16 anos. Nosso objetivo é trazer essa molecada para o esporte, tirar da rua. As crianças veem as camisas do time, perguntam. É uma forma de criar uma identidade dentro da comunidade”, afirma o diretor do Social, Natanael Costa, o Pistolinha.

Nesse cenário, não é de se espantar que boa parte das lideranças comunitárias estejam ligadas ao futebol. Edson, do Cantareira, por exemplo, era diretor da Biblioteca comunitária de Heliópolis, da Unas, parte do projeto “Identidade Cultural de Heliópolis”, que conta com o auxílio de Ruy Othake. O arquiteto, entre outras ações, desenhou os prédios redondos que fazem parte do plano de reurbanização da favela e os edifícios do Polo Cultural, que reúne cinema, teatro e oferece aulas esportivas e culturais para crianças. “Aos poucos, as pessoas estão percebendo a força que Heliópolis tem. E o futebol faz parte dessa força. Os times só recebem da comunidade. E estão percebendo que também podem fazer muito. No Cantareira, por exemplo, vamos fazer uma partida para arrecadar livros para a biblioteca. São ações simples, mas que ajudam. O futebol pode ajudar”, diz Edson.

Também do Cantareira, Emerson Santana, o Macarrão, trabalha no Conselho Tutelar, também é líder comunitário e resume o papel do futebol em Heliópolis. “É o local onde você se encontra com seus amigos. Onde as crianças ainda têm sonhos, ainda sonham em virar estrelas do futebol. Traz um elemento de autoestima que ajuda muito a quem mora aqui”.

Magrão: Craque de Heliópolis

O volante Magrão, revelado pelo São Caetano e com passagens por Palmeiras, Corinthians e Internacional, é um dos craques de Heliópolis. Ele deixou a comunidade pelo futebol profissional e até hoje, quando volta ao país, passa por Heliópolis para rever os amigos dos tempos de infância. Hoje no Al-Whada, o volante se identifica muito com o futebol de várzea da comunidade onde cresceu e se identifica com o Ratata, time que já jogou a Copa Kaiser, mas hoje está suspenso por problemas disciplinares.