Vida de artilheiro
Papo de Várzea
Abriu os olhos. Procurou o relógio. 11h30.
O palavrão saiu alto. Atrasado. Ao seu lado, a morena apenas virou para o outro lado. “Essa vai longe”. Mais do que um pensamento, era um desejo. Quase meio-dia. Olhou para a mulher, agora com mais atenção. “Valeu a pena…”
Estava atrasado. Já tinha perdido o café da manhã na concentração. Agora, só indo direto.
O jogo do dia é no estádio. Nada dos campinhos surrados. Grama verdinha. Não vai ter de driblar os buracos dos terrões ou os calombos dos sintéticos.
Foi até o armário pegou a mochila. Saiu do quarto e abriu: chuteira, caneleira. Aprendeu a usar a proteção quando era garoto. Nunca gostou de levar pancada. Com as caneleiras, tinha mais confiança. Mas era provocado.
– Boleiro não usa caneleira. Joga com a canela limpa. Escapa da porrada na habilidade.
“Tudo bem. Mas vai encarar um beque armário, daqueles que vem na maldade. Melhor estar precavido”.
Foi até o banheiro, pegou uma toalha limpa e a necessaire. Sabonete, shampoo, condicionador e gel. O gel não pode faltar. Pegou o celular. Estava desligado. A noite passada tinha sido boa. Samba na sede do clube. Churrasco e cerveja. Titular não paga.
Às 10h40, já estava tirando a moto da garagem. Ligou, acelerou. Ignorou a cor dos semáforos. Em 30 minutos estava no vestiário. Ninguém comentou o atraso. Ainda. Colocou o uniforme e esperou. O técnico entrou. Com o canto do olho, viu que seu atacante tinha chegado.
– Foi boa a noite?
Sem resposta. Fechou os olhos. Viu a morena na cama. Sorriu. Preleção, reza, fogos, entrada em campo. Jogo atrasado. Do vestiário até o apito do juiz, tudo passa como um borrão. Bola rolando, hora de mostrar serviço.
O volante domina, caminha com a bola, levanta a cabeça. Pose de craque. Não é. “Vai tocar de lado”. Fez isso. Quando o meia encosta na bola, o lateral-direito sai em disparada. Recebe na intermediária. O atacante já está entre os zagueiros, esperando o lançamento. O lateral tenta driblar o marcador. Não consegue.
“É, vai ser um dia daqueles…”
Após 15 minutos, nenhuma bola chegou ao ataque. Só chutão. Trombou duas vezes com a zaga, em estouros do goleiro. Foi o mais perto que chegou. Mais ou menos como no samba da noite anterior.
A morena chegou cedo, acompanhada pela zaga de amigas. Foi logo chegando perto dos músicos. “Mulher não vai para o samba para comer carne, não vai para beber cerveja. Está lá para dançar”. Troca de olhares.
– Ei, conhece aquela?
Perguntou ao diretor do time, aquele que é responsável pelo bicho por jogo aos domingos. Não sabia. O goleiro, que nunca perdia um samba, também não. “Volta para o jogo”, pensou. Mais um chutão, trombada com a zaga. É, nada feito.
O segundo tempo começa. O volante, aquele que só passa para o lado, se vê livre. Corre com a bola. Lança. Foi meio torto, muito para a lateral. Mas pegou a defesa rival de surpresa. O lateral se adiantou para fazer a cobertura. O quarto-zagueiro também. Restou o beque-central. “Um tapa na frente e ele não segura”.
O atacante domina a bola, tenta o tapa. Era a primeira vez que pegava na bola. Claro que não ia dar certo. A bola foi longa demais. A zaga ficou, mas o goleiro saiu. “Na próxima”.
Respirou fundo. A morena voltou. Está dançando. É prima do cara do cavaquinho, que vigia, atento. Ninguém se aproxima. Ter um guarda-costas intimida. Grande, armário. Poderia ser um dos beques do jogo. A oportunidade só veio perto da meia-noite. O samba seguia forte. A morena foi até o bar. Pediu uma água.
– Deixa que eu pago. Por minha conta.
Xaveco. Nome, profissão, música preferida. Quando ela sorriu, o sucesso era certo. Levou para casa. “Que noite”.
– Presta atenção! Tá com a cabeça aonde?
O grito do capitão acordou o atacante. Escanteio. Cobrança alta. A zaga subiu, resvalou. A bola, que só tinha chegado uma vez, sobra no pé do atacante. Ele domina meio sem jeito, chuta fraco. O goleiro se estica e coloca para fora. Novo escanteio. Cobrança fechada. A bola bate na trave e sobra para o atacante. De cabeça, gol vazio. Para fora.
Jogo chato. Sem gol.
Torcedores saem cabisbaixos. Jogadores também. O atacante entra no vestiário, toma uma ducha. Veste a roupa, a mesma com que saiu de casa. Tira o pote de gel, coloca o cabelo para cima. Passa um perfume. “Ainda dá tempo”.
Pega o envelope do bicho apressado. Sobe na moto. Ignora a cor dos semáforos. A moto fica na frente da casa. Pega o celular. Desligado. Abre a porta. Vai até o quarto. Olha o relógio. Três da tarde.
A morena ainda está lá.
Artilheiro.
Por Bruno Doro
PS: É um texto de ficção. Mas, aposto, muitos personagens assim correm atrás da bola em um campinho perto de você…