Papo de Varzea

Título alemão e fracasso brasileiro têm almas iguais: o futebol de várzea

Papo de Várzea

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O Brasil, o país do futebol, gosta de se gabar que por aqui nasce um craque a cada esquina. Que é só ir até o campinho do bairro para encontrar o próximo Neymar. O resultado da seleção brasileira em sua própria Copa do Mundo indica que isso está bem longe da verdade. Só que… Será que é assim mesmo?

Para ser sincero, não sei se surgem craques a cada esquina no Brasil. Ninguém sabe. Mas de uma coisa eu tenho certeza: existe muito talento nas ruas brasileiras, jogadores com potencial para brilhar nos campos país a fora. O problema é que esses talentos são jogados no lixo aos montes. E é essa a diferença que a Alemanha esfregou na cara do Brasil com o título da Copa do Mundo, conquistado no domingo.

Depois de dois anos indo, semanalmente, para as periferias acompanhar futebol de várzea, eu consegui ver que existem muitos atletas com potencial para o futebol profissional jogados às moscas. São meias habilidosos que distribuem o jogo com precisão, pontas de lança habilidosos que deixam sempre o centroavante na cara do gol, atacantes rápidos e dribladores que cansam de humilhar seus defensores.

E eles estão nos terrões, ganhando R$ 100, R$ 200 por jogo. Como ninguém sobrevive com isso, são obrigados a levar seu corpo ao limite. Jogam quatro, cinco vezes por fim de semana para completar o orçamento. E quando surge a oportunidade de tentar a sorte no futebol profissional, para a maioria deles já não vale a pena: os destaques da várzea faturam mais de R$ 1500,00 por mês com futebol amador, mais prêmios por performance – alguns clubes são muito bem estruturados, tem patrocinadores, programa de sócio-torcedor e até treinam durante a semana.

No futebol profissional, o salário é fixo, mas menor. Pouco acima do salário mínimo. E o atleta só pode defender um clube, sem ganhos extras. Sem contar o fator calote: nas divisões menores, muitos times não pagam. E os que pagam, ainda podem atrasar. É comum ouvir, na várzea, relatos de atletas que deixaram de ser profissionais após, pela enésima vez, jogar um campeonato estadual por seis meses e receber apenas três meses.

Mas o que a Alemanha tem a ver com isso? A estrutura alemã, ao contrário da brasileira, abraça o futebol amador. Não exclui. A Federação Alemã investe na formação de seus campeonatos e tem uma estrutura gigantesca: são 2344 divisões e 33.633 times ativos. Considerando que cada equipe conta com média de 30 jogadores, o universo de atuação, em competições oficiais, é superior a um milhão de vagas.

No Brasil, o sistema é bem mais modesto. São quatro divisões nacionais e 80 divisões regionais, nas categorias principais. Isso significa que o futebol brasileiro tem, para jogadores adultos, menos 40 mil vagas. Sabe qual o número de praticantes de futebol com que o governo trabalha? Dois milhões.

O resultado disso é um processo de seleção dificílimo. Quem vira jogador profissional no Brasil é herói e talentosíssimo. Mas isso quer dizer também que muita gente simplesmente nunca teve uma chance real de mostrar valor. Se o menino é craque, mas demorou a crescer, dificilmente terá chance nas categorias de base de um time. Se demorou a desenvolver seu talento motor e passou a mostrar talento a partir dos 14 anos, pode esquecer. Já é considerado velho.

Compare com o sistema alemão: eles têm um número similar ao brasileiro de jogadores de futebol, mas um sistema nacional 25 vezes maior. Some a isso, ainda, um programa nacional de capacitação de treinadores. E não só isso, mas um sistema de captação de talentos que funciona. Boa parte dos campeões mundiais foi descoberto em peneiras feitas pela própria federação ao redor do país – e essas peneiras são frequentes. Quem se destaca, pode mostrar se merece jogar em centros de treinamento.

No Brasil? Boa sorte nas peneiras dos clubes… E, mesmo para quem passa, a vida é difícil. Nas categorias de base, a necessidade de vitória em todos os campeonatos faz treinadores optarem pela força em detrimento do talento. Quem jogou bola no colégio sabe que, quando você é criança, quem cresceu e desenvolveu músculos mais cedo leva vantagem no corpo, mesmo não tendo o mesmo talento.

Não se engane: não é por acaso que nos últimos anos revelamos muito mais defensores do que atacantes. Se peneiramos força, vamos encontrar força. Como encontrar talento se ele é esmagado a cada jogada quando é moleque, tentando virar jogador profissional?

E a várzea está justamente nesse meio: os times são independentes de federações. CBF? Puff… Nunca apareceu nem para dar oi. No domingo, o Blog do Rodrigo Mattos noticiou que a Alemanha construiu 1387 campos pelo país na atual administração. A CBF fez três, na Granja Comary, para a seleção brasileira.

Os times amadores, quando recebem atenção do poder público, acabam virando peça de manobra eleitoral. Políticos vão ao local e prometem “grama sintética, alambrado, iluminação, vestiário”. Quando é eleito, reforma o campo e ganha os votos “por toda a vida”. Você acha, de verdade, que é um ambiente propício para a formação de craques?

Olhando para tudo isso, é um milagre que, mesmo nessa situação, ainda tenhamos craques aparecendo por aqui. Jô e William, por exemplo, jogaram muito nos campos de terra de Arthur Alvim e Itaquera antes de serem revelados pelo Corinthians. David Luiz fez o mesmo nos campinhos de Diadema.

Mas quem perde o bonde do futebol e, adolescente, ainda joga no terrão, na maioria das vezes já deu adeus ao sonho de criança. Já sabe que não vai “ser jogador”. O futebol amador é esquecido por aquele futebol que todos vemos na TV. E, enquanto for assim, vamos seguir destruindo possíveis talentos e reclamando, de quatro em quatro anos, que não produzimos mais craques como antigamente.

Por Bruno Doro