A volta de um campeão: a história de como Mourinho influencia a várzea
UOL Esporte
Kico Nogueira, o técnico do Classe A, é um daqueles personagens que todo mundo que busca histórias para contar adora. É gente boa, adora um bom papo e, principalmente, tem muito para contar. Após meia-hora de conversa, o Papo de Várzea teria assunto para três, quatro textos sobre ele.
O primeiro seria o mais inacreditável. O que você acharia se alguém contasse que, de uma maneira muito mais direta do que você possa imaginar, o português José Mourinho influencia o futebol de várzea de São Paulo?
A segunda seria sobre a união de suas duas paixões, o futebol e o cavaquinho – ele tocou, por exemplo, em 12 álbuns do grupo Redenção. A terceira poderia envolver a história de como a morte de dois amigos o deixaram por uma década afastado da bola. E, para terminar, a última envolveria a história como ele chegou ao Classe A – que ele contou para a reportagem aos risos. Por isso, esse post está dividido em quatro. Você pode ler só a primeira, só a segunda ou o pacote completo. Fica a seu gosto…
José Mourinho na várzea
Falar que José Mourinho tem influência direta na maneira que Kico comanda sua equipe é um exagero. O próprio técnico amador nem mesmo cita o português nas conversas. Mas quem presta atenção no encadeamento de fatos consegue, sim, achar uma ligação.
E esse link é bem mais sólido do que aquele que você pode ter imaginado ao ler o título desse post. Não, Kico não se inspira no jeito do português de armar suas equipes, lidar com seus atletas ou lidar com a imprensa – nesse quesito, aliás, ele está bem longe da postura do “special one”.
Mas os dois são ligados por uma pessoa: Baltemar Brito, ex-técnico do Grêmio Osasco e que hoje está na Líbia. Ex-jogador profissional, Baltemar trabalhou com José Mourinho por seis temporadas. Foi auxiliar no União Leiria, no Porto e no Chelsea. E ainda acompanhou o português na passagem pela Inter de Milão, no departamento de observação de jogadores.
Com Kico, a ligação é amistosa. “Antes de virar técnico, eu me preparei. Tenho três mentores nessa área, pessoas que fazem parte do mundo do futebol e com quem eu sempre mantenho contato”, diz o treinador. O trio é composto por Baltemar, Robson Santos e Adelsio Reis.
“No Brasil, todo mundo é técnico. Quando vamos preparar uma equipe, todos discutem como vai jogar, como pode fazer para melhorar, como mudar um esquema tático. Eu sempre converso com esses três sobre futebol. E não apenas o amador, mas o profissional também. Como o time foi armador, como não foi, o que o treinador pretendia com determinada substituição”, conta Kiko.
Drama com amigos
Para chegar até esse ponto na carreira, porém, ele teve de superar dramas. No plural. Quando era garoto, Kico era goleiro. Chegou a jogar nas categorias de base do Corinthians. “A gente treinava no terrão do Parque São Jorge. O Ronaldo Giovanelli era do time de cima. Estávamos bem, mas sabe como é categoria de base. De uma hora pra outra, decidiram que ninguém mais servia. Acabei dispensado, junto com todo o meu time”, lembra.
Ele voltou para a várzea e estava contente. Até que a morte de dois amigos o fez se afastar, definitivamente dos campos. O primeiro foi em um campo. “Um grande amigo meu se envolveu em uma briga durante um jogo. Mas a coisa ficou feia e ele acabou morto por pauladas”, conta.
Um episódio assim seria suficiente para qualquer um deixar o futebol de lado. Mas ele ainda sofreu uma segunda perda. Paulinho, seu amigo que estava sendo observado por times do Rio de Janeiro, morreu na represa de Paraibuna. “Ele escorregou em uma pedra e não sabia nadar. Depois disso, mandei o futebol para longe. Me afastei por dez anos”, conta o hoje treinador.
Sambista profissional (ou quase)
Foi nesse momento que o samba entrou com mais força em sua vida. Kico tocava cavaquinho desde garoto e sempre foi envolvido no mundo do samba. “Mas nessa época, depois do que aconteceu, me voltei inteiramente para o cavaquinho e passei a tocar bastante”.
E fez sucesso. “Eu toquei muito tempo com o grupo Redenção. Gravei 12 discos com eles. Alías, discos e CDs, se não vão achar que eu sou velho”, diverte-se. E não foi só isso. Ele também tocou, por dez anos, em um importante bar da Vila Madalena. Hoje, segue na ativa, no grupo Arrasta Sandália (“Que, aliás, está desempregado. Se alguém tiver procurando um grupo de samba, pode nos chamar”).
Apesar do currículo, Kico nunca permitiu que o samba assumisse o controle de sua vida. “Até cheguei a viver da música por algum tempo, mas não tive coragem. Quando as coisas apertaram pela primeira vez, peguei minha pastinha e voltei a ser vendedor”, lembra.
A volta ao futebol
Mas como quem é do futebol não consegue ficar eternamente longe, Kico voltou. Foi há pouco tempo. E a história é engraçada: ele foi chamado porque o uniforme do Classe A tinha sumido. “Um dia, o Zonga e o Maurício me ligaram: ‘Kicão, precisamos da sua ajuda. Estamos jogando a Copa Kaiser e o uniforme foi roubado’. Eu comecei a dar risada na hora”.
O problema, porém, era real. E Kico ajudou. Usando sua lábia de vendedor, conseguiu dois patrocinadores e um novo jogo de uniformes. “Não queria me envolver. Avisei, brincando, que só entraria no negócio se o time fosse bom. Era 2010, e o time era bom. Tanto que, no ano seguinte, um pouco com a minha ajuda, conquistou o título”.
Quando o time foi campeão, porém, Kico ainda era apenas um dos que ajudava. Em 2013, ele colocou a mão na massa para valer. Bicampeão da Copa Kaiser, o técnico Tião Almeida deixou o Classe A para treinar o Vila Izabel. Alguns jogadores o acompanharam.
Para quem ficou, porém, era hora de reconstrução. “Tivemos de montar um novo elenco. E recomeçar do zero nunca é fácil”. O resultado? Alguns tropeços e, após três jogos, o Classe A tinha sido rebaixado. Quem duvidava do trabalho de Kico como treinador, porém, teve tempo para mudar sua opinião.
Na Série B da Kaiser, o Classe A reencontrou a boa forma. Já conseguiu o acesso para a elite em 2014 e, no último domingo, se classificou para as quartas de final do torneio.