Máquina niveladora, irmão marrento, caçula “traíra”: no Dia dos Pais, histórias de uma família de varzeanos
UOL Esporte
O pai se chama Sérgio Raimundo Rosa. Foi zagueiro. E dos bons. Marcava duro, mas tinha classe no passe. Era preciso, tinha uma visão de jogo privilegiada. Quando precisavam, quebrava galho como volante. Ou melhor. Quebra-galho é para quem faz a função sem qualidade. Seu Sérgio, não. Era um beque dos bons. E como volante, também brilhada.
Quando entrava em campo, era chamado de Máquina Niveladora. Sim, é um apelido estranho. Mas pense um pouco e é fácil entender o motivo. Era só escalá-lo que ele acertava o time. Se a defesa estava capenga, ele equilibrava. Se o meio-campo deixava buracos, ele tapava. Entendeu, agora, a função da máquina?
Um pena, mas ele não chegou ao profissional. Atuou por times amadores da Aclimação, como o Flamengo e o República. Mas passou seu talento no sangue. Teve dois jogadores. Uma verdadeira família varzeana.
Irmão marrento
Luciano é o mais velho. É marrento. O pai era destro. Ele e o irmão são canhotos. Ao ser perguntado sobre a perna esquerda do caçula, é rápido ao responder. “Herdou essa canhotinha de mim. Eu sou o mais velho. Não vou dar moral para moleque, não”.
Tem 34 anos e deixou o futebol profissional no ano passado. Teve uma trajetória sólida, mas nunca teve uma chance de brilhar em um grande clube. Nas divisões de base, passou por Portuguesa e Corinthians. Quando virou profissional, chegou a jogar em Portugal. Mas fez carreira, mesmo, no interior de Minas Gerais. Foi jogador do Esportivo Possense por seis anos.
Em 2012, passou sete meses lesionado. Ainda tentou voltar, defendeu um time de profissionais em amistosos nos EUA, mas desistiu. “A saída era ir para o interior. Tinha propostas. Mas sabe como é. Você chega ao clube, recebe no primeiro mês. No segundo, também. A partir do terceiro, começa a faltar. Desisti”.
Ficou na várzea. Hoje, joga no Bafômetro, um dos times da comunidade de Heliópolis. O local já foi a maior favela da América Latina. Hoje, está em acelerado processo de urbanização e respira futebol, com um time a cada esquina. Luciano gostou da equipe. Uma família, como ele chama. “Não pagamos ninguém. No máximo, tem ajuda no combustível”.
Nem por isso a pressão diminui. A torcida cobra mesmo. Chega no vestiário, reclama da atuação. Mas quando joga bem, aplaude, grita. E quando precisa, ajuda: é só um atleta do time chegar à comunidade e relatar um problema que todos se desdobram para encontrar uma solução. “É a diferença do futebol de várzea para o profissional. A torcida vive mais o time”.
Caçula ''traíra''
O caçula se chama Júnior. O traíra, que dá título a esse post, vai irritar o jogador. Mas foi dito pelo próprio irmão: vem de uma partida que jogou contra Luciano pela Copa Kaiser. Ele é lateral do Pioneer, da Vila Guacuri, um dos times mais bem estruturados da várzea de São Paulo. Encarou o Bafômetro, de Luciano, em uma fase anterior. Venceu por 2 a 0. Nos gols e nas pancadas. “Ele me deu dois pontapés. Quando terminou o jogo, quase fui para cima. Ele foi traíra. Bateu por trás”, diverte-se Luciano. “Eu já estou com 34. Ele tem 25. Não vai bater nos mais velhos de novo”.
Em defesa de Júnior, a altura ajudou. Ele é quase dez centímetros mais alto do que Luciano. Bater, então, pode ser uma questão de ponto de vista. Quem o viu em campo, porém, pode se perguntar o que ele faz na várzea. É por opção. E a história é a mesma de muitos craques do terrão: empresário acha jovem talentoso, leva o garoto para o clube e, depois, cobra um valor alto à família para que siga no clube. Ele passou algumas vezes por isso. Jogou no interior de São Paulo. No Mato Grosso. Em Santa Catarina. “Pediam cinco mil aqui. Ali, eram cinco mil. Mais alguns dias e eram mais dois mil para ficar. Não dá”, revela Júnior.
Mesmo assim, chegou a ser profissional. Passou alguns meses no União São João, de Araras. Depois, veio para o São Paulo – onde chegou, como ele mesmo faz questão de ressaltar, sem indicação, na cara e coragem, e só não ficou por não ter empresário. Depois, rodou. No fim do ano passado, estava no Santa Catarina Clube. Voltou para São Paulo e sossegou.
Mas não ficou longe do futebol. “Meu dom é o futebol. Hoje, mesmo no amador, eu estou ganhando a vida. Jogo aos fins de semana. Durante a semana, faço bicos”. Geralmente, ajuda o irmão a entregar tecidos. O importante, porém, é o que ele faz com a bola nos pés.
Duelo no próximo domingo
Por que estamos falando da dupla? É uma pergunta justa. Bom, no próximo fim de semana, às 11h30, a Copa Kaiser marcou uma partida especial para os Rosa. Bafômetro e Pioneer vão se enfrentar no campo do Nacional, na Barra Funda, um dos palcos nobres do futebol amador de São Paulo.
Esse duelo podia estar marcado para este domingo. Seria a desculpa perfeita para um texto como esse. Mas, pense bem. O pai é a máquina niveladora, mas um filho é marrento e o outro, traíra (no bom sentido, que fique claro). Tudo bem, então, que eles se enfrentem sete dias depois do Dia dos Pais. Afinal, isso é várzea. E a várzea é bonita justamente por não tentar ser perfeita.